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sexta-feira, 14 de junho de 2013

A Lenda do Pico Cidrão





A LENDA DO BICHO CIDRÃO

O som é aterrador e toma conta do corpo e do espírito de quantos o ouvem, num misto de desassossego e angústia, num desejo de fugir e de ficar, numa ânsia indizível de despenhamento. Parece um uivo mas é também um grito, profundo e rouco que devia vir das entranhas da terra mas surge inesperado do alto da serra. São centenas de gargantas escancaradas e escarpadas gemendo alto uma dor qualquer que é natural, e por isso mesmo, sem tempo e sem fuga. (...)
O Pico Cidrão é uma serra quase inacessível ao homem. Habitam-no o vento e a águia. Constituído por rocha basáltica, negra e dura, é todo ele recoberto de cavernas abertas como bocas escancaradas.
Conta-se que há tempos habitou aquelas paisagens abruptas e quase inexpugnáveis um pastor. Esse homem tinha um cão que era o único e fiel amigo de muitas solidões. Habituado àquelas lonjuras feitas de escarpas, o cão tornara-se quase tão bom saltador quanto as cabras que guardava.



Um dia, recolhia o pastor o seu rebanho, o cão, que andava atrás de um animal extraviado, calculou mal o salto e despenhou-se no vácuo, resvalando de escarpa em escarpa. Rolou; rasgou-se nas lâminas de pedra num uivo de dor imensa e acabou sendo ele mesmo um pouco de cada rocha.
Como sempre ante o irremediável, o ser humano segue um de dois caminhos: ou se fecha num castelo inexpugnavelmente seco e silencioso, ou retribui à Natureza o golpe inexplicável e sempre tão aparentemente inútil que é a morte, num grito feroz de lágrimas.
E o pastor fez-se eco do uivo do cão:
- Que mãe és tu, que me rouba o irmão, o amigo!...
Tu, que tudo me tens negado, tu, vens tirar-me o companheiro da minha vereda!! Maldita sejas! Maldita... e só, para sempre! Ah! Antes o tivesse um dia oferecido ao Demo!...
O vento tomou conta do uivo e da maldição, e das palavras fez sibilações. Enquanto o pastor viveu, guardou-as nas cavernas do Pico, escondidas e secretas, onde só a águia penetrava para as limpar da poeira do tempo. Quando, por fim, o pastor se foi juntar ao companheiro de outrora, o vento ordenou à águia que soltasse o uivo e a maldição que num eterno jogo de escondidas habitam desde então as alturas do Pico Cidrão.
Dizem as gentes da região que aquele grituivo aterrorizante provém do ser híbrido e demoníaco que são os espíritos dos dois amigos, finalmente um só, o Bicho Cidrão.


THE LEGEND OF THE BEAST OF PICO CIDRÃO

The sound is terrifying and takes over the body and spirit of its hearers, a mixture of distress and anguish, a desire to escape and to stay in an unspeakable eagerness to fall. It looks like a howl but is also a cry, deep and hoarse that should come from the bowels of the earth but comes unexpectedly from the top of the mountain. Hundreds of throats are flung open and scarps moaning loudly a pain that is natural, and therefore has no time and no escape. (...)

Pico Cidrão is a mountain range almost inaccessible to man. In it Inhabits the wind and the eagle. Consisting of black and hard basaltic rock, it is all covered with caves open like gaping mouths.
It is said that long ago dwelt those abrupt and almost impenetrable landscapes one shepherd. This man had a dog that was the unique and faithful friend of many solitudes. Accustomed to those ​​far reaches made of scarps, the dog had become almost as good jumper as the goats that it guarded.



One day, as the shepherd picked up his flock, the dog, who was behind a stray animal, miscalculated the jump and crashed into the vacuum, slithering from scarp to scarp. It rolled and was tored up on the stone blades in a howl of immense pain and he ended up being a bit of each rock.
As always facing the hopeless, the human being follows one of two paths: either he closes into an invincible castle dry and silent, or returns to Nature the  inexplicable and ever so seemingly useless blow which is death, in a fierce cry of tears.
And the shepherd echoed the howl of the dog:
- What mother are you that robs me of my brother, my friend! ...
Thou hast denied me everything, you, came and took away the companion of my path! Damn you! Damn ... and only, forever! Ah! I would rather have offered it to the Devil! ...
The wind took hold of the howling and the curse, and of the words made a hiss. While the shepherd lived, he put it in the caves of the peak, hidden and secret, where only the eagle penetrated to clean them from the dust of time. When, finally, the pastor joined his old companion, the wind commanded the eagle to release the howl and the curse that, in an eternal game of hide and seek, inhabits since then the heights of Pico Cidrão.
They people of the region say that the terrifying hiss comes from a hybrid and demonic being, that is the spirits of the two friends finally combined into one, the Cidrão Beast.

in Lendas de Portugal, de Fernanda Frazão